Crónica de Alice Vieira | O meu chefe

Alice Vieira

 

O meu chefe
Por Alice Vieira

Neste dia 24 de Maio em que estou a escrever esta crónica, mas há 8 anos, morreu o meu Chefe Pires.

Fernando Pires foi chefe de redacção nos 20 anos em que trabalhei no “Diário de Notícias”

Não era de convívio fácil, não tinha grande cultura, mas foi o melhor chefe de redacção que eu tive. Tanto assim que, no dia da sua folga, aquilo era uma desorganização naquele jornal que ninguém se entendia.

Por tudo isso, desde a sua morte até à chegada do confinamento, um grupo de colegas nossos desse tempo juntava-se sempre num jantar para o recordar. Nem todos os chefes de redacção se podem gabar disso.

Ele sabia que podia contar comigo fosse para o que fosse, e eu sabia que podia contar com ele. Nunca me lembro de alguma vez lhe ter perguntado se podia ir fazer este ou aquele serviço: eu anunciava-lhe que ia fazer aquele serviço e ia.

E ele sabia que me podia perguntar fosse o que fosse, género “acha que Fulano merece que lhe façam uma entrevista?”  E eu  respondia, baixinho, “claro, chefe!”, ou ”nem pensar, chefe!”. Ou, mostrando-me um telex que vinha de um país estrangeiro, “sabe onde isto fica?”

Saí do “Diário de Notícias“ quando tive um cancro e, depois de operada, decidi ir viajar e divertir-me.

Mas, quando voltei, de vez em quando ele ainda me telefonava, “precisava tanto que estivesse aqui…” O “DN” tinha excelentes jornalistas, não era esse o caso, mas ele é que não falava com eles com a mesma confiança com que falava comigo.

E depois… depois havia ainda outra coisa muito importante: ele adorava ópera e eu também. Acho que não houve nenhum cantor ou cantora que eu não tivesse entrevistado, nenhuma ópera que eu não tivesse visto.Um livro meu até se chama “Um Fio de Fumo nos Confins do Mar”, que é um verso de uma ária da “Madame Butterfly “. Conhecia o São Carlos como as minhas mãos, os corredores, os camarins, o porteiro, Sr Manuel, já me conhecia assim que me via aparecer.

Por tudo isto, tenho ainda muitas saudades do meu chefe Pires. E, onde quer que esteja, espero que esteja a ouvir ópera.

 

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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